O voto plural: a grande novidade da reforma mobiliária
No passado dia 31 de dezembro, foi publicada em Diário da República a Lei n.º 99-A/2021, que procede à revisão do Código dos Valores Mobiliários (“CVM”) e de um conjunto de legislação respeitante ao setor financeiro.
1. A alteração legislativa em conformidade com as recomendações da OCDE
A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económicos (“OCDE”), no Relatório publicado em outubro de 2020, dedicado a mobilizar o mercado de capitais português para o desenvolvimento e o crescimento, recomendava que fossem ponderadas soluções legislativas para promover a cotação de empresas no mercado.
Com esse propósito, sugeria, nomeadamente, que fosse assegurada flexibilidade no que diz respeito às estruturas de voto “para dar resposta às preocupações generalizadas dos proprietários e empreendedores portugueses no tocante à perda do controlo das suas empresas”1. O Relatório nota, ainda, que a reduzida dispersão do capital social no mercado poderá estar relacionada com as limitações associadas à implementação de control enhancing mechanisms, como as ações com voto múltiplo2.
Correspondendo à recomendação da OCDE, aditou-se o artigo 21.º-D ao CVM, onde se prevê a possibilidade de criação de categorias de ações com direito de voto plural.
Do novo enquadramento legal recentemente aprovado destaca-se:
i) A possibilidade de serem emitidas categorias de ações com o direito (especial) ao voto plural, independentemente de previsão estatutária nesse sentido (ao contrário do que se exige para a criação de ações preferenciais sem direito de voto: artigo 341.º/1 do Código das Sociedades Comerciais “CSC”);
ii) A possibilidade de emissão desta categoria de ações limita-se às sociedades emitentes de ações admitidas à negociação em mercado regulamentado ou sistema de negociação multilateral;
iii) Vigora um cap na majoração do direito de voto: a cada ação apenas podem corresponder, no máximo, cinco votos;
iv) As ações com direito de voto plural que resultem da conversão de ações ordinárias não podem representar mais de metade do capital social (artigos 341.º/1 e 344.º, aplicáveis por via do artigo 21.º-D do CVM). Literalmente, da norma resulta que este limite já não merece aplicação nos casos de introdução das ações especiais no momento da constituição da sociedade ou, posteriormente, em sede de aumento de capital (ao contrário do que acontece no caso das ações preferenciais sem voto, regime no qual este limite quantitativo também opera no momento da emissão das ações e não apenas no da sua conversão).
v) O exercício do voto majorado pode ser limitado pelos estatutos e, em qualquer caso, não pode ser utilizado na deliberação de delisting voluntário.
No direito societário português vigorava – até à entrada em vigor da reforma mobiliária em análise – uma proibição generalizada de voto plural nas sociedades anónimas, o qual é apenas aceite nas sociedades por quotas, ainda que limitado a 20% do capital social.
A recente alteração do CVM pressupõe a possibilidade de ser quebrado o princípio societário one share, one vote pelas sociedades admitidas à negociação em mercado regulamentado ou sistema de negociação multilateral. O objetivo é claro: promoção do acesso ao mercado de capitais. A existência de um mercado de capitais sustentado e robusto, suscetível de gerar mais investimento, promove o crescimento económico, cria valor e emprego. Não sendo um desígnio em si mesmo, constitui instrumento ao serviço da economia real. A possibilidade de criação de categorias de ações com direito de voto plural permitiria obstar ao medo de perda de controlo tipicamente associado à entrada em mercado e, nessa medida, contribuiria para promover o acesso ao mercado de capitais.
2. Na prática: como criar ações com direito de voto plural?
A introdução de categorias de ações com direito de voto plural pode ocorrer em dois momentos davida da sociedade:
i) De forma originária, por estipulação no contrato de sociedade (artigo 24.º/1 do CSC), situação quenão suscita problemas, para além das questões geralmente associadas à criação de quaisquer categorias de ações privilegiadas.
ii) De forma superveniente, durante a vida da sociedade, i.e., quando esta já se encontra cotada nomercado regulamentado ou num sistema de negociação multilateral. As ações podem ser criadas por duas vias:
a) aumento de capital ou
b) conversão de ações ordinárias em especiais.
3. Operacionalizar a criação das ações com voto plural e tutela dos sócios não privilegiados
3.1. Em sociedades nas quais não existem outras categorias de ações privilegiadas
O legislador não foi indiferente à posição em que ficam os sócios que não beneficiam do novo direito de voto plural, que seja criado durante a vida da sociedade.
Da articulação do sistema mobiliário e societário geral resulta que:
i) A deliberação de aumento de capital que importe a criação de categoria de ações com voto plural deve ser tomada pela maioria qualificada exigida para as alterações estatutárias3
a) quer estejamos em sede de aumento de capital (artigo 21.º-D/3 do CVM);
b) quer em sede de conversão de ações ordinárias em especiais (21.º-D/3). Neste caso, solução equivalente já resultaria da interpretação generalizadamente defendida na doutrina a propósito do artigo 344.º do CSC, aplicável ao caso por remissão do artigo 21.º-D/4 do CVM. A consagração legal da maioria exigida apresenta, ainda assim, a inequívoca vantagem de garantir segurança jurídica.
ii) Existe, nos termos gerais, direito de preferência de quem for acionista à data da deliberação de aumento de capital por entradas em dinheiro (artigo 458.º do CSC), o que assegura que a criação desta categoria especial só limitadamente desequilibra as relações de poder entre acionistas. No caso da conversão de ações ordinárias em especiais existem argumentos para defender que, mesmo não existindo um aumento de capital, os sócios também beneficiam desse direito de preferência.
Embora o enquadramento legal pareça fazer depender a criação de ações com direito de voto plural da deliberação de assembleia especial de acionistas4, uma interpretação teleológica do regime impõe que esta deliberação apenas seja exigida nas sociedades nas quais já existam direitos especiais pré- -existentes à data da conversão de ações e que sejam afetados pela criação das ações com voto plural.
3.2. Em sociedades nas quais já existiam ações privilegiadas
A introdução de ações privilegiadas com direito de voto plural suscitará maiores problemas naquelas sociedades em que já existam ações privilegiadas, ainda que de categorias diferentes das ações com voto plural.
Nestas sociedades, o direito de preferência não evita que as alterações estruturais se façam em prejuízo de alguns sócios. Pelo contrário, a atribuição do direito de preferência a todos os sócios na proporção das suas participações, sem consideração pelos direitos especiais previamente existentes, pode potenciar a alteração das relações de poder entre sócios.
A alteração do CVM não equaciona estas situações, nem tinha de o fazer, na medida em que o direito societário geral já fornece um quadro adequado de tutela dos interesses dos sócios privilegiados.
A criação de novas categorias de ações com direitos especiais equivalentes ou superiores aos já existentes conduz a um prejuízo indireto dos sócios (previamente) privilegiados. Nestes casos, os sócios prejudicados devem dar o seu consentimento à alteração (artigo 24.º/5 do CSC). Esse consentimento não carece de unanimidade, mas de deliberação em assembleia especial dos acionistas titulares de ações dessa categoria, que decide pela maioria exigida para as alterações estatutárias.Em suma, a introdução de categorias de ações com direito de voto plural, naquelas sociedades em que já existam outras ações privilegiadas, terá de passar por um duplo crivo:
i) aprovação por maioria qualificada em assembleia especial dos acionistas titulares de ações das categorias indiretamente prejudicadas pela decisão (artigo 389.º/2 do CSC) e
ii) aprovação em assembleia geral pela maioria exigida para as alterações estatutárias.
A assembleia especial deve deliberar em primeiro lugar, de forma a que a assembleia geral se revista de efeitos práticos. Na falta de aprovação pela assembleia especial, perde sentido a deliberação mais ampla em assembleia geral.
4. Limitações ao exercício da majoração do voto
De acordo com o artigo 21.º-D/5 do CVM:
i) Os estatutos podem limitar as deliberações em que o direito de voto plural pode ser exercido;
ii) Imperativamente, o voto plural não pode ser exercido nas deliberações de delisting voluntário (artigo 251.º-F do CVM): nesse caso vale a proporção de voto reconhecida pelos estatutos. É a particular necessidade de tutela dos sócios minoritários face à decisão de saída do mercado – por perda de liquidez dos valores mobiliários e frustração das expetativas na estabilidade da cotação em mercado – que impõe a limitação do exercício do voto majorado.
5. A opção legislativa pela não previsão das ações de lealdade
As alterações legislativas não contemplam, ao contrário do que havia sido proposto pela OCDE; a previsão expressa da possibilidade de as sociedades emitentes criarem ações de lealdade (loyalty shares), i.e, ações que, após um período de tempo de detenção ininterrupta pelo mesmo acionista, lhe conferem direito a majoração do direito de voto. A criação destas ações visaria promover o investimento de longo prazo, premiando os acionistas leais.
Fica por esclarecer se a opção legislativa pressupõe que a criação das ações de lealdade não carece de previsão legal expressa nesse sentido, nomeadamente por ser defensável que o voto de lealdade não constitui direito especial, ou se, pelo contrário, representa uma opção do legislador no sentido de a criação das ações de lealdade não ser recomendável/permitido no mercado regulamentado ou sistemas de negociação multilateral.